Comunidade europeia preserva tradições do século XVII em isolamento

Há lugares no mundo onde a história não apenas deixou marcas, mas se mantém viva. No coração das montanhas do Cáucaso, em uma região remota que é considerada uma das mais isoladas da Europa, famílias vivem como há séculos. Com casas de pedra, cercadas por torres medievais, eles falam um idioma ancestral e seguem tradições que remontam a tempos anteriores aos países modernos. Aqui, o ritmo da vida é determinado pelas estações, com invernos longos que podem durar quase metade do ano, enquanto a modernidade avança de forma bem devagar.
Esse cenário real se encontra em Ushguli, na região histórica de Svaneti, na Geórgia. Localizada a cerca de 2.100 metros de altitude, Ushguli é considerada uma das vilas habitadas mais altas da Europa. As paisagens por lá parecem saídas de uma pintura renascentista, repletas de geleiras, vales estreitos e montanhas imponentes. Durante séculos, chegar a este lugar significava encarar estradas estreitas, rios turbulentos e neve que bloqueia as passagens por meses. Hoje, no rigor do inverno, moradores podem ficar isolados por até semanas. É um estilo de vida que exige planejamento e resiliência, já que a comida precisa ser estocada com antecedência e o som do mundo externo se desvanece em meio ao silêncio das montanhas.
Tradições do século XVII preservadas nas montanhas
Em Ushguli, o tempo não é algo que se corre atrás; ele molda a vida das pessoas. As famílias locais, conhecidas como svanetianos, preservam tradições que remontam ao século XVII, e até antes. Eles habitam casas de pedra com arquitetura medieval e torres fortificadas, construídas entre os séculos IX e XII, que serviam para proteger as famílias em tempos de conflito.
Não só a estrutura física é antiga, mas também a cultura. A língua falada, svan, é uma das mais antigas da Europa e não possui alfabeto próprio, sendo exclusiva daquela região. As práticas comunitárias giram em torno da agricultura, com ênfase em gado, trigo e produção artesanal, além de rituais religiosos que misturam influências ortodoxas e pré-cristãs.
Nesse mundo, sobrenomes contam histórias de clãs, os casamentos seguem costumes rígidos e as celebrações agrícolas marcam a passagem do tempo. Festas comunitárias reúnem todos para celebrar colheitas, nascimentos e eventos religiosos, como se o tempo tivesse toda a calma do mundo.
Entre a sobrevivência e a resiliência cultural
Viver em Ushguli é tudo, menos romântico; é resistência. Os invernos rigorosos podem cair a temperaturas de até -20 °C, e a neve se transforma em muros naturais que bloqueiam o acesso. A economia da vila gira em torno de três pilares: a pecuária, a agricultura de subsistência e o turismo de baixa escala.
Essa preservação cultural é tão importante que o mapa urbano medieval foi tombado pela UNESCO em 1996, restringindo construções modernas e mantendo a aura única do lugar. Contudo, essa preservação cria dilemas entre os familiares que desejam continuar com as tradições e aqueles que buscam oportunidades em cidades como Zugdidi e Tbilisi, onde empregos e universidades aguardam.
Apesar das dificuldades, muitos jovens retornam para Ushguli. O sentimento de pertencimento é forte. A terra, passada de geração em geração, é vista como uma extensão da família; perder essa ligação é como perder uma parte da própria história.
Ushguli na era da globalização
Nos últimos anos, algumas mudanças discretas ocorreram na vila. A energia elétrica, por exemplo, chegou a algumas áreas remotas através de pequenas hidrelétricas. A internet via satélite começou a se espalhar, e uma estrada parcialmente asfaltada encurtou a rota até a cidade mais próxima. Mas, mesmo assim, o acesso pode ser interrompido pela neve ou quedas de barreira. O transporte continua sendo feito por cavalos, caminhonetes rústicas e, claro, pela força física.
Embora o turismo tenha trazido novas oportunidades financeiras, ele também trouxe a necessidade de equilibrar tradição e modernidade. Os habitantes locais resistem à ideia de transformar a vila em um “cenário artificial”. Para eles, preservar a cultura é preservar a identidade.
Uma lição sobre tempo, memória e futuro
Ushguli não é apenas um lugar; é um lembrete de que existem realidades que não se encaixam no ritmo acelerado do século XXI. Esta comunidade resistiu a milênios de conflitos, manteve sua língua e protegeu sua cultura, mesmo quando o mundo ao seu redor começou a mudar rapidamente.
Enquanto muitos correm atrás de tecnologia e conectividade, Ushguli reafirma algo simples: nem todos precisam se adaptar à velocidade do mundo moderno para prosperar. Aqui, a história não está guardada em museus. Ela caminha pelas ruas de pedra, sobe as montanhas cobertas de neve e ecoa em um idioma antigo que ainda resiste ao passar dos anos.



