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Escândalo dos aparelhos auditivos: idosos e preços abusivos

O mercado de aparelhos auditivos é bastante concentrado no mundo. Atualmente, apenas cinco grandes empresas dominam cerca de 98% do setor global, o que dificulta a concorrência e faz com que os preços sejam bem altos.

Essas companhias incluem a Sonova, da Suíça, as dinamarquesas Demant e GN Store Nord, a norte-americana Starkey, e o grupo WS Audiology, que surge da fusão entre Widex e Signia, com sedes distribuídas entre Noruega, Dinamarca e Cingapura. Esse controle significa que os consumidores raramente conseguem encontrar opções mais acessíveis ou claras.

Em diversos países, essa dominação resulta em barreiras elevadas para novos fabricantes, limitando a variedade de modelos econômicos. Além disso, contratos de exclusividade com profissionais de saúde e distribuidores dificultam ainda mais o acesso a outras marcas.

Profissionais entre a prática clínica e o modelo de vendas

Em fóruns internacionais, como o Reddit, usuários compartilham experiências em que audiologistas lucram ao revender marcas específicas. Essa situação levanta questões sobre a real liberdade de escolha dos pacientes, que muitas vezes são orientados a comprar modelos vinculados a essas marcas.

Depoimentos revelam que, em certas consultas, pacientes sentem-se pressionados a comprar logo, sem tempo para pesquisar preços ou buscar uma segunda opinião. Isso é mais comum em clínicas que fazem parte de franquias ou estão ligadas a grandes fabricantes, onde profissionais recebem comissões e incentivos para promover certos produtos.

Nos Estados Unidos, essas cinco empresas são conhecidas como “The Big Five”, dado o poder que exercem sobre o mercado de audição.

Lobby e resistência à mudança no mercado norte-americano

Tudo ganhou destaque em 2017, quando o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Over-the-Counter Hearing Aid Act, que permitia a venda de aparelhos auditivos diretamente em farmácias para quem possui perda auditiva leve a moderada, sem precisar de receita médica. Essa mudança tinha o potencial de reduzir custos e facilitar o acesso.

No entanto, como mostraram senadores como Elizabeth Warren e Chuck Grassley, as empresas da área aumentaram os investimentos em lobby para adiar a implementação dessa efetiva mudança. Em 2022, os gastos em ações políticas ultrapassaram US$ 1,2 milhão, o que equivale ao dobro do que foi registrado em 2017.

Enquanto isso, o preço médio de um aparelho auditivo continua em torno de US$ 2.300, podendo chegar a US$ 5.000 por par. Esse valor alto se deve, em parte, ao modelo de “bundle pricing”, onde o consumidor paga pelo aparelho e os serviços do audiologista em um único pacote. Embora isso possa garantir a qualidade do atendimento, também dificulta a comparação de preços e produtos.

A nova regulamentação e a tentativa de democratizar o acesso

Em 2022, a Food and Drug Administration (FDA), que é a agência reguladora equivalente à Anvisa no Brasil, aprovou oficialmente os aparelhos auditivos de venda livre (OTC), permitindo sua venda por menos de US$ 300 em farmácias e lojas especializadas. Essa decisão representou um grande avanço no setor, abrindo portas para novas empresas e tecnologias.

Contudo, o mercado ainda é lento para se adaptar. Os fabricantes tradicionais mantêm grande parte dos canais de distribuição e continuam investindo em campanhas educativas, mantendo assim o domínio das grandes marcas.

No Brasil, a situação é ainda mais complexa. A falta da fiscalização adequada e a presença de vendedores não credenciados permitem o surgimento de fraudes e produtos sem registro sanitário, afetando especialmente a população idosa, que é a mais vulnerável.

Golpes e desinformação: o avanço das fraudes no Brasil e em Portugal

Enquanto nos Estados Unidos as questões giram em torno da regulamentação, no Brasil e em Portugal a realidade é outra. A falta de fiscalização e a vulnerabilidade dos consumidores idosos criam um cenário propício para fraudes e desinformação.

No Brasil, muitos aparelhos vendidos como “aparelhos auditivos” na verdade não possuem registro na Anvisa. Muitas vezes, são apenas amplificadores de som genéricos, sem comprovação de segurança ou eficácia, e chegam a custar entre R$ 3.500 e R$ 10.000, acompanhados de promessas de "cura" ou "audição perfeita".

Em Portugal, o modelo de “produto + serviço” também aparece. Os pacientes são induzidos a comprar aparelhos junto a pacotes de consultas e ajustes, elevando o custo final. Em algumas situações, “clínicas móveis” oferecem testes gratuitos e convencem idosos a financiar equipamentos desnecessários.

Relatos da mídia portuguesa mostram casos de consumidores que foram levados a assinar contratos de crédito de longo prazo sem entender que eram empréstimos. Um exemplo chocante envolveu uma idosa que ficou presa em um financiamento de 4.980 euros (mais de R$ 31 mil) por um aparelho que nunca funcionou corretamente.

Falhas na fiscalização e o papel do consumidor

A legislação brasileira é clara: todo aparelho de amplificação sonora deve ter registro na Anvisa, conforme a Resolução RDC nº 185/2001. Além disso, apenas empresas com fonoaudiólogos responsáveis podem comercializar esses dispositivos.

Porém, a fiscalização é limitada. Anúncios de produtos sem certificação continuam a ser veiculados, com avaliações e depoimentos falsos. O Conselho Regional de Fonoaudiologia de São Paulo alerta que esses aparelhos, se mal regulados, podem até prejudicar a audição, comparando-os a “óculos de camelô” que podem causar danos à visão.

Conforme a situação progride, as denúncias se acumulam. No entanto, as plataformas digitais não têm se mostrado eficientes em barrar anúncios irregulares em grande escala. É uma verdadeira “luta contra a hidra”: a cada site removido, surgem outros dois com as mesmas práticas.

O desafio do acesso gratuito pelo SUS

Uma questão sensível no Brasil é a dificuldade de acesso a aparelhos auditivos gratuitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar do direito ao benefício, muitos pacientes simplesmente não sabem que têm essa opção ou enfrentam longas filas de espera.

Dados do Ministério Público de Minas Gerais indicam que, em 2021, mais de 1.900 pessoas com deficiência auditiva estavam há dois anos na fila para receber os dispositivos. A Justiça determinou um prazo de 180 dias para regularização, com multa em caso de atraso.

Casos semelhantes foram registrados em Tocantins, onde um motorista aguardava mais de um ano pelo seu aparelho, mesmo após uma decisão judicial que previa o fornecimento. A Secretaria de Saúde alegou que o pedido já estava com a empresa responsável.

Esses exemplos mostram o descompasso entre a necessidade e a oferta pública, agravado pela burocracia e a falta de profissionais. Em muitos lugares, o processo exige muitas avaliações e laudos, o que atrasa o atendimento e desencoraja pacientes.

Quando o direito de ouvir vira privilégio

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 477 milhões de pessoas no mundo enfrentam algum tipo de perda auditiva, sendo mais de 10 milhões no Brasil. Projeções indicam que até 2050, 1 em cada 4 pessoas terá algum grau de perda auditiva.

Apesar de 80% dos casos poderem ser tratados com o uso de aparelhos auditivos, apenas 1 em cada 4 pessoas que precisa efetivamente usa um. Entre os motivos, estão o alto custo, a falta de informação e, claro, o medo de fraudes.

A perda auditiva não é apenas um problema físico. Ela está ligada a questões como isolamento social, depressão e demência em idosos. Entretanto, o tema ainda recebe pouca atenção nas políticas públicas. Especialistas vão além, afirmando que a democratização do acesso precisa ter três pilares fundamentais:

  1. Concorrência real, com marcas e produtos variados.
  2. Informação clara para o consumidor.
  3. Educação sobre prevenção auditiva, principalmente com os jovens expostos a barulhos altos e uso prolongado de fones de ouvido.

O caminho para uma audição acessível e segura

Para ampliar o acesso, precisamos de transparência e educação. Consumidores devem ser orientados sobre como identificar produtos homologados e verificar registros na Anvisa, além de desconfiar de promessas milagrosas. As plataformas de vendas online também têm um papel crucial em restringir anúncios de produtos irregulares.

Com uma concorrência justa e fiscalizações eficazes, o mercado consegue se autorregular. Já existem modelos de baixo custo e boa qualidade em alguns países, mas ainda enfrentam entraves logísticos e culturais para chegar ao público brasileiro.

A questão vai além de uma mera questão econômica; trata-se de acessibilidade e dignidade. O direito de ouvir e ser ouvido é essencial para a inclusão social. Com políticas públicas eficientes, informações confiáveis e um compromisso verdadeiro das empresas, é totalmente possível transformar a audição em um direito acessível, e não em um privilégio.

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