Adidas, Nike e Mickey: símbolos da criminalidade no Brasil

O que antes era apenas uma questão de estilo ou uma forma de expressão, hoje virou algo bem mais sério: trata-se, em muitos casos, de sobrevivência. Em várias partes do Brasil, facções criminosas estão mudando o significado de símbolos que todos nós conhecemos, como as marcas Adidas e Nike, ou até mesmo personagens como o Mickey Mouse. Agora, vestir uma camisa ou fazer um gesto com as mãos pode ser visto como uma provocação, capaz de atrair a ira de grupos rivais.
Esse fenômeno, que combina uma aura de violência simbólica, controle territorial e o medo coletivo, revela um novo estágio do poder das facções. Elas exercem domínio não só sobre o comportamento de pessoas, mas também sobre a sua aparência e a linguagem do dia a dia. A apropriação desses símbolos está se tornando uma forma de intimidação e censura social, especialmente em bairros onde o crime prevalece.
Quando o que se veste vira sentença de morte
Em Salvador, essa situação é tão grave que a simples associação de uma marca pode causar pânico entre os moradores. Por exemplo, a Adidas, com suas três listras, passou a representar o grupo Bonde do Maluco (BDM), que se identifica com três dedos levantados. Já em áreas dominadas pelo Comando Vermelho (CV), essa mesma marca foi transformada em um sinal de provocação.
No controle do Comando Vermelho, a Nike é vinculada ao “tudo dois”, uma referência direta à sua sigla. Há relatos de pessoas ameaçadas fisicamente apenas por usarem roupas associadas ao time adversário. Um comerciante na cidade revelou que precisou trocar de roupa rapidamente para evitar a violência após ser avisado: “Aí é três, e aqui nós somos dois”.
De marcas globais a códigos locais de facções no Brasil
O uso de símbolos vai além das grandes marcas esportivas. Em 2025, um jovem de 18 anos foi assassinado por usar uma camiseta do Mickey Mouse em uma área controlada por uma facção rival. O uso daquela roupa, que era um presente da avó, foi interpretado como uma provocação direta, resultando em sua morte brutal.
Esse tipo de violência não se restringe a Salvador. Em lugares como Camaçari e Jericoacoara, casos semelhantes têm acontecido com adolescentes que foram executados por simplesmente publicarem fotos fazendo gestos que simbolizam afiliações a facções criminosas. Muitas das vítimas nem mesmo estavam envolvidas com o crime, mas foram punidas por serem associadas a grupos rivais.
Linguagem visual, medo e autocensura
Os especialistas em segurança pública argumentam que essa dinâmica é uma forma extrema de controle social. O domínio das facções não se limita apenas ao tráfico de drogas, mas também inclui regras sobre vestimenta, comportamento e comunicação. Esse clima de medo e autocensura se espalha e impacta a vida cotidiana das pessoas.
Em Salvador, por exemplo, estudantes foram afastados de escolas por desenharem três riscos nas sobrancelhas, um gesto frequentemente visto nas redes sociais, mas que adquiriu uma conotação negativa. O medo de serem confundidos com membros do BDM foi tão alto que 15 jovens deixaram de frequentar as aulas.
Quando o medo ultrapassa a fronteira das roupas
A simbologia que as facções instauram já chegou a afetar marcas e instituições fora do criminoso. Em 2024, o Botafogo teve que mudar o logotipo de um patrocinador, pois o símbolo de uma mão em forma de “V” foi mal interpretado como uma referência à facção Terceiro Comando Puro. Torcedores alertaram que isso poderia colocar vidas em risco em certas áreas do Rio.
Esses episódios mostram que a violência simbólica muitas vezes antecede a física. Em comunidades onde o crime dita as regras de aparência, a liberdade individual se esvai. Comerciantes evitam expor marcas específicas, jovens deixam de usar roupas de grife e muitos alteram seus gestos em fotos para não serem confundidos com inimigos de facções. O medo se torna uma legislação social não escrita.
A apropriação simbólica como nova forma de poder
A socióloga Ivana Davi, pesquisadora do sistema prisional, vê esse comportamento como uma extensão do poder territorial. “Quando uma facção regula o que pode ou não ser usado, ela ultrapassa o crime e assume o papel de controle social”, explica.
Essa realidade evidencia a força das facções no Brasil, que existem em 26 estados e reúnem mais de 80 grupos conhecidos no sistema prisional. Ao transformar marcas globais em símbolos de poder local, essas organizações criam uma linguagem visual que reforça tanto a intimidação quanto o pertencimento. O gesto, a cor ou a marca deixam de ser meras escolhas pessoais e passam a demarcar fronteiras invisíveis entre o "nós" e o "eles".