Banheiro público ajudou espionagem da Guerra Fria e submarinos soviéticos

À primeira vista, o banheiro público de Alresford, uma vila inglesa charmosa e tranquila a cerca de uma hora e meia de Londres, parece só mais um lugar comum. No entanto, essa estrutura singela foi o cenário de um dos episódios mais intrigantes da Guerra Fria, servindo como ponto de coleta de documentos secretos da Marinha britânica. Aqui, espiões soviéticos trocavam informações preciosas, escondendo tudo de forma estratégica dentro da caixa do vaso sanitário. Quem imaginaria que um local tão despretensioso poderia abrigar segredos tão valiosos? Hoje, este banheiro é parte da história britânica e exibe uma placa que conta: “Informações secretas escondidas neste banheiro foram coletadas periodicamente por Harry Houghton.”
O início de tudo: desconfiança, traição e muito dinheiro suspeito
Na década de 1950, Harry Houghton, um funcionário da base naval de Portland, parecia levar uma vida convencional. Mas essa ilusão escondia uma realidade muito mais complexa. Ele frequentemente viajava a Londres e, ao voltar, trazia muito mais dinheiro do que o que se esperaria de um burocrata da Marinha.
A esposa de Harry, Peggy, começou a ficar inquieta. Ela encontrava envelopes estranhos e documentos sigilosos, além de perceber mudanças na personalidade do marido, que se tornara paranoico e agressivo. Em 1955, Peggy fez denúncias aos superiores de Harry, mas, ao invés de serem levadas a sério, suas preocupações foram descartadas como ciúmes. O que ninguém sabia é que estavam prestes a descobrir um dos maiores escândalos de espionagem já registrados no Reino Unido.
A conexão soviética e a criação da rede Portland
Harry não estava sozinho nessa empreitada. Com a ajuda de sua nova parceira, Ethel Gee — carinhosamente chamada de “Bunty” —, e mais três agentes soviéticos, Houghton formou a rede de espionagem de Portland. O plano era engenhoso:
- Eles fotografavam documentos ultrassecretos na base naval.
- As imagens eram armazenadas dentro do banheiro público de Alresford.
- Agentes soviéticos as recolhiam e escondiam os microfilmes em livros antigos, ajustando até mesmo pontos finais para não levantar suspeitas.
- Esses livros eram enviados para Moscou, onde os micropontos eram decifrados com equipamentos disfarçados.
Os personagens excêntricos por trás da espionagem
Entre os envolvidos, estava Gordon Lonsdale, um suposto canadense que vendia jukeboxes, mas na realidade era um agente da KGB com identidade forjada. Seus aliados, conhecidos como os Krogers, se apresentavam como “livreiros de antiguidades”, mas, na verdade, eram espiões experientes que atuaram desde os tempos do Projeto Manhattan.
Esse grupo se envolvia em atividades aparentemente normais, como jantares e idas ao teatro, enquanto repassava informações cruciais sobre submarinos nucleares e armamentos britânicos à União Soviética.
Denúncia, rastreamento e prisão cinematográfica
Em 1960, a CIA recebeu uma denúncia de um espião polonês, indicando que um membro da Marinha britânica, Harry, havia se juntado à KGB em Varsóvia. O MI6 começou a monitorar Houghton, seguindo seus passos até o banheiro de Alresford e, em seguida, até a casa dos Krogers. Em janeiro de 1961, a prisão de Houghton, Bunty e Lonsdale ocorreu em frente ao Teatro Old Vic, em Londres, onde Bunty carregava documentos secretos recém-coletados.
Os Krogers, por sua vez, foram capturados em sua casa, que funcionava como um verdadeiro centro de espionagem.
O julgamento e o destino dos espiões
O julgamento que se seguiu foi considerado um dos mais notáveis na história da espionagem britânica:
- Harry e Bunty receberam 15 anos de prisão, mas cumpriram apenas 9.
- Lonsdale foi sentenciado a 25 anos, mas acabou sendo trocado por um agente britânico na URSS.
- Os Krogers pegaram 20 anos, mas também foram trocados, vivendo o restante de suas vidas como instrutores de espiões em Moscou, chegando a se tornar até um selo postal soviético.
Uma história de espionagem, traição — e amor
Após a prisão, Harry e Bunty se casaram e permaneceram juntos até a morte, nos anos 1980. As cartas de amor que trocaram na prisão foram desclassificadas em 2019, revelando que Peggy Houghton sempre esteve certa. O governo britânico havia ignorado um alerta que poderia ter desmantelado a rede de espionagem antes.
Informações roubadas permitiram à URSS desenvolver submarinos mais silenciosos e obter dados críticos sobre o submarino nuclear britânico Dreadnought. O banheiro público de Alresford, que ainda existe e pode ser visitado, foi, de fato, um centro estratégico durante a Guerra Fria.
Espionagem no banheiro virou símbolo histórico
Hoje, esse local é lembrado com uma placa informativa e a cidade de Alresford oferece passeios guiados que recontam essa intrigante história. Se você topar com um livro antigo com um ponto final fora do normal, pode pensar duas vezes antes de descartá-lo.
Espionagem, amor, traição e documentos secretos escondidos. É intrigante como, em um banheiro público de uma pacata vila, pode se esconder uma narrativa digna de cinema. A história do banheiro de Alresford nos ensina que os maiores segredos do mundo costumam estar onde menos esperamos, e que às vezes, um alerta ignorado pode mudar tudo.