Navios gigantes são desmanchados na Índia e Paquistão para reciclagem

O fim dos gigantes dos oceanos se desenrola em praias lamacentas do sul da Ásia. Longe dos portos ostentosos, enormes navios são intencionalmente encalhados e “devorados” por um exército de trabalhadores em Alang, na Índia, e Gadani, no Paquistão. Essa indústria é um pilar fundamental da economia circular global, convertendo cascos obsoletos em milhões de toneladas de aço reciclado que vão direto para a construção civil.
Porém, esse motor econômico, que movimenta cerca de 2,2 bilhões de dólares só na Índia, tem um custo alto. Ele opera em um paradoxo cruel, onde a viabilidade financeira se baseia na externalização de custos sociais e ambientais. Com regulamentações frouxas, mão de obra em situação precária e um ecossistema em risco, o setor gera bilhões, mas o verdadeiro preço é pago por trabalhadores e pelo meio ambiente.
A lógica econômica: por que o desmanche no sul da Ásia?
A migração da indústria de desmanche da Europa e dos EUA para a Ásia, que começou nos anos 1960, foi uma estratégia puramente econômica. À medida que as nações ocidentais apertaram suas regras ambientais e trabalhistas, os custos para desmantelar navios de forma segura aumentaram consideravelmente. Por outro lado, o sul da Ásia oferecia uma mão de obra barata e regulamentações menos rigorosas, além de uma demanda crescente por aço.
Esse movimento impactou profundamente a economia local. Em Alang, a atividade gera milhões de toneladas de sucata metálica anualmente, representando cerca de 1% a 2% da demanda por aço da Índia e muito mais no Paquistão. Isso se traduz em mais de 30.000 empregos diretos e cerca de 500.000 indiretos, tornando a indústria essencial para a segurança econômica do país.
O procedimento do desmanche: o método “beach”
O método mais comum no sul da Ásia é conhecido como "beaching". Embora seja eficiente do ponto de vista econômico, é fonte de sérias preocupações de segurança. A técnica envolve lançar o navio contra a praia durante a maré alta, para que ele encalhe o mais fundo possível na lama. Na baixa-mar, esse cenário se transforma em um verdadeiro chão de fábrica a céu aberto.
Esse processo é descrito como trabalho manual intenso, onde os trabalhadores são comparados a “formigas humanas” que devoram uma carcaça gigante. Usando maçaricos e ferramentas rudimentares, cortam o casco em pedaços gigantescos. Placas de aço pesando até meia tonelada são simplesmente jogadas na lama ou carregadas por grupos de homens. Esse método é otimizado não pela segurança, mas para ter o menor custo possível, utilizando a mão de obra desprotegida com salários que podem chegar a apenas 15 reais por dia.
O custo humano: vidas em risco pelo aço
A força de trabalho nessa indústria é formada, em sua maioria, por migrantes das regiões mais carentes da Índia e do Paquistão. Eles chegam em busca de oportunidades, mas muitas vezes se encontram em situações desesperadoras, sendo explorados devido à sua vulnerabilidade. O trabalho infantil, por exemplo, é uma realidade alarmante, com estimativas sugerindo que um terço dos trabalhadores em Alang tem entre 15 e 17 anos.
Um estudo do Tata Institute of Social Sciences revelou a realidade dura das condições de trabalho e de vida. Em Alang, existem apenas 12 chuveiros e seis banheiros para cerca de 35.000 trabalhadores, que vivem em favelas superlotadas e sem acesso a água potável ou eletricidade.
Além disso, a falta de equipamentos de proteção é evidente. Os trabalhadores muitas vezes manipulam aço fundido usando apenas roupas improvisadas. As taxas de acidentes, como quedas e explosões, são alarmantemente altas e raramente registradas. Para piorar, a exposição a materiais como amianto e metais pesados pode causar doenças graves, cujos efeitos podem levar anos para se manifestar.
O paradoxo ambiental e a pressão regulatória
O método "beaching" torna impossível a contenção de poluentes. Ao abrir os navios, substâncias tóxicas, como óleos, tintas e metais pesados, são despejadas diretamente na costa. Com o tempo, esses poluentes vão para o mar, prejudicando florestas de mangue e ameaçando a subsistência das comunidades pesqueiras locais. É irônico que, enquanto a reciclagem de aço reduza emissões de CO2, ela contribua para a degradação dos ecossistemas costeiros.
Entretanto, mudanças nas regulamentações estão a caminho. A Convenção Internacional de Hong Kong (HKC), que estabelece padrões de segurança e ambientais, entrará em vigor em junho de 2025. Já o Regulamento da UE sobre Reciclagem de Navios proíbe efetivamente o "beaching" para navios europeus, exigindo reciclagem em instalações devidamente credenciadas.
Porém, um dos principais desafios é a evasão. Proprietários podem contornar a legislação da UE ao registrar seus navios sob pavilhões de conveniência meses antes do desmanche, permitindo que continuem a enviar navios para estaleiros de encalhe, mantendo o modelo de baixo custo e alto risco.
O dilema do aço reciclado
O fim dos gigantes em Alang e Gadani representa um dos maiores paradoxos da economia global. É ao mesmo tempo um triunfo da economia circular, que recupera enormes quantidades de aço, e uma catástrofe social e ambiental, que se baseia na exploração de trabalhadores vulneráveis. A indústria enfrenta um dilema, dividida entre lucratividade e a crescente pressão por uma reciclagem mais sustentável e ética.



